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CHUVA PRA DOIS 

          Dali a pouco desceriam à praia para ver os fogos de perto, era a ideia. Quem sabe conseguissem, champanhe sob o braço, pés marcando o asfalto quente, o Porto da Barra logo à frente. Dezembro em seu último dia. Recomeço. Rute tentaria mesmo exausta. Desde que descobriu as fotos no celular dele, se “reinventava”. Foi o termo usado pelo analista. Então, fodia. Com outros, outras, às vezes muitos. Com o analista rolou duas vezes, o idiota de pince-nez e tudo, a tarde se esticando além da conta. Ela bebera um tanto.  
          Não adiantou: quando encarou a Avenida ACM, saindo do consultório, chorava. Foi a primeira vez que desejou a chuva. Pouco importava a avenida, as pessoas sem rosto, a canção tonitruante das ruas. Queria se livrar daquilo, a certeza de que nada havia mudado. Seguia firme para o abismo.
          Só lhe restava tentar novamente. E seria naquele dezembro. 
          Daí que a encontramos no dia trinta e um, na varanda de seu apartamento a encarar sem ânimo o Farol; a grande marcha branca em direção ao mar seguia logo abaixo. O marido parecia não saber. Ou fingia. Acabara de sair do banho. Sempre a mesma indolência, os gestos vagos, havia pouca vontade naquilo, era certo. Avançava com as amenidades de sempre; suas frases se perdiam na dura neblina das horas. Era o mesmo fantasma. Manteve assim por muitos anos; manteria até o dia seguinte. Quando acordaria sob o sol do meio-dia para encontrar seus amigos na Ribeira. 
          “Vou encontrar o Sidinei”, ele dizia, ou Pedro, ou Afonso. Os nomes mudavam, eram muitos. A intenção, não. Rute sabia. 
          O tempo caía como pétalas, enquanto isso. E não havia beleza naquilo apesar da poesia na frase. Só ela parecia enxergar.

* * *

          Juntos há vinte e tantos.  Nem um nem outro poderá dizer que algo os arrebatou no princípio. A inércia. Foi comodidade, aflição, o medo da entrega. Tudo acontecendo numa noite ruidosa e suja, num daqueles quiosques da pracinha do Imbuí. Rute saía de um relacionamento difícil em que havia perdido muito mais que seu tempo e sua autoestima. Fora o tipo de relação em que nada poderia ser apreendido – ainda caminhava sobre escombros.     
          Daí, o medo. Um pouco de sexo casual com estranhos (alguns nem tanto), além daquela fatigante rotina de viagens ao litoral e saída com amigos, em sua maioria casais. 
          Sentia-se digna de pena.
          Foi numa dessas saídas que a apresentaram a Jonas. Parecia um sujeito alegre, do tipo piadista e bonachão. Era metido com política, coisa sobra a qual nunca conversava com ninguém, ao menos publicamente, além de ter ombros largos e uma barriga comum aos que já haviam passado dos quarenta. A mesa havia sido arranjada de forma a ficarem lado a lado. Os amigos ao redor os secavam com os olhos numa tola expectativa. Funcionou. Depois de um tempo, beijaram-se e prometeram um reencontro para o dia seguinte (e tudo correria bem, dentro dessa lógica maçante).
          Quando se deram conta, moravam num quarto-e-sala no Dois de Julho. Fingiam se amar de verdade. Tudo seguia o fluxo. Quieto, sem nenhuma intensidade. A convivência muda, presa aos projetos futuros, o acúmulo trivial de objetos sem préstimo. Um novo apê, quem sabe, mas nada de filhos. E a coisa não passava disso: ambos mergulhados no escuro da sala, tomando o café em goles suaves. A novela.
          Foi mais ou menos quando se mudaram para Barra que Jonas começou a sair com mais frequência. Mas sem ela. Havia sempre um baba no antigo bairro (Ribeira), um amigo promovido na corretora de seguros, um aniversário-só-para-homens, mas numa boa e sem sacanagens. Falava dessa forma, e ria; Jonas cada vez mais distante.   
          Quanto mais ela ficava só, mais as coisas se tornavam vazias que o habitual. Ela se acostumara ao vácuo das tardes, havia largado o emprego a pedido dele. Tinha tempo de sobra. Vivia de sobras. 
          Rute cruzava a cidade a esmo. Longas caminhadas pelas ruas do Centro, pelo Corredor da Vitória, o sonho burguês enclausurado em bunkers de vidro e fumaça. Na Carlos Gomes, ela costumava ser mais lenta, olhava as fachadas tacanhas, a rua estreita, seus monolitos.
          Muitas vezes ela parou na Cruz Caída da Sé, a tarde febril, esporas de luz atingiam seus olhos. Os sacizeiros a cercavam, os mendigos e seus olhos famintos. O Comércio logo abaixo cintilava por conta. Ela gostava daquilo. Jonas continuava a chegar tarde em casa. Muitas vezes bêbado. Outros perfumes. Foi assim no aniversário de casamento, no dela, no dele. O carnaval sempre o encontrava no Gandhi, ela entenderia, ele e os amigos; era tipo ritual, tradição. 
          Na cama, eram dois corpos estranhos que pouco se encontravam. Trepavam sem vontade, não se suportavam mais.
          Jonas cada vez mais longe. A cabeça dela cheia de porquês. 
          Então as perguntas de sempre. A crise e o pilates. A cartomante e o rivotril, às nove. O analista foi indicação de uma amiga. Às terças, Avenida ACM. Um imbecil.    

* * *

          Nos últimos doze anos ou mais, o que a valia a pena era a noção de que nada daquilo ruiria. Tê-lo como marido parecia o certo, a indispensável calmaria. Para ele, a esposinha-em-casa lhe agradava. Enquanto pegava umas putas na rua (a tal foto no celular) e saía com amigos, sempre divertido, um homem de bem. O piadista.   
          Foi quando Rute viu as tais fotos no celular dele, as putas. Jonas ressonava largado no sofá. Foi numa segunda. Rute ligou para o número gravado, escutou as verdades.
          “O gorducho paga bem”. O que ela poderia lhe dizer, enfim? 
          No dia seguinte, resolveu testar outras posições no divã. Tentou ignorar o jeitinho afetado, as ponderações de sempre. O tal pince-nez, surreal. Mas até isso havia se esgotado. O sabor da aventura tinha a mesma medida do desgaste, o sonho corroído. Não só com o analista, mas com os outros e as outras: não queria daquela forma. 

* * *

          Não era o momento, contudo. Evitaria pensar nos erros, Rute na varanda encarando a Baía. Tomou a dianteira e o convidou. Pediu proximidade; vem cá, vamos ver juntos os fogos daqui de cima, o Porto tão lindo; vamos ver tudo de nossa varanda-a-beira-mar. Vamos refazer os passos. Depois a gente desce, quem sabe, mais um casal na marcha, o monstro de mil faces abarrotando o asfalto, da ladeira até o morro do Cristo. Chegando à Ondina, fácil. 
          Nessa hora, bocados de luz atravessaram as cortinas, junto com um vento sorrateiro e frio. Rute lembrou da chuva; não era hora praquilo, porém. O lance era outro. Reconciliar, apesar de tudo. 
          Então o chamou novamente. Sorriu para ele. Mas aquele foi um voo curto. Desabaria novamente. Jonas não escutou seu pedido, sequer a olhou. Sentado no sofá, ele mexia no celular, umedecia os lábios. Amanhã sairia com “os amigos”, certeza.   
          A ela só restou desejar o milagre: a tal chuva sobre o Farol. Pois talvez só a chuva pudesse salvar a mulher que ainda caminhava sobre escombros. E que tentava sorrir, afinal, movida pelo doce esquecimento daquilo que nem mais ódio era.     

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Gustavo Rios [Salvador, Bahia] é autor de Céu ausente [CEPE Editora], Allen mora no térreo [Mariposa Cartonera] e O Amor é uma coisa feia [7letras]. De poesia, lançou o livro Rapsódia Bruta – poemas e outras brutalidades [Mariposa Cartonera]. Também participou de várias coletâneas: Tempo Bom [Iluminuras], As Baianas [Casarão do Verbo] e Revista Confraria [Confraria do Vento].