Ser imortal é insignificante;
exceto o homem, todas as criaturas o são, pois ignoram a morte;
o divino, o terrível, o incompreensível, é se saber imortal.
O Aleph
Borges
Orfeu, por que não me esperas? O que há contigo, não percebes a minha fadiga, o meu estado de apatia, a incompletude do meu processo, à revelia da minha vontade? Não quero estar atrás de ti, não quero ser a tua sombra! Aqui, te abandono; aqui, sigo a minha Solidão. Quero ser dona de minha própria história. O destino é meu. Estou tão combalida e fraca, trêmula diante dos labirintos toscos da Morte. Insegura quanto ao que sou agora, que espécie de ser eu sou, se atravessei os subterrâneos e agora volto à vida. Ainda me desejarás, ainda serei possuída por ti? Serei a mesma e quererei o mesmo de antes? Sentirei desejos? Sinto medo, Orfeu. As mulheres da Cidade são verdes, frescas, tenras, suas carnes não experimentaram a fealdade e o terror de estar entre os mortos; estão vivas e jovens. Seus corpos não foram atravessados pelo tempo e pelo abandono, no profundo dos oceanos mais sombrios. Está tudo tão escuro, meu amor! Por onde me levas? Enganaram-te os Deuses? Quanta escuridão testemunham meus olhos! E tu apenas caminhas, Orfeu! Como se estivesses sem mim! Como tantas vezes, apenas olhas para ti. Narciso! Tu não me vês!
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Orfeu seguia adiante, caminhando à frente de Eurídice, determinado a encontrar a luz, pois não queria arriscar o olhar em direção a ela; fora proibido pela grande Deusa. Se olhasse para trás e a visse, em meio às trevas, a perderia para a Morte novamente. Se ele olhasse para trás, penetraria mistérios e vislumbraria aparições vedadas ao humano. Veria os mistérios de Eurídice e não se pode penetrar, jovem amante, o invisível de uma mulher. Seguia determinado, rijo. Adoraria estar ao seu lado, segurando a sua mão e apoiando o seu corpo combalido. Eurídice parou, pois já não suportava seguir os passos daquele homem e gritou: Olha para mim, tirânico egoísta! Orfeu estancou e segurou a cabeça, em agonia. Fora atingido no cerne de sua vaidade, afinal, estava naquele lugar terrível, por ela. Largou os braços em desistência, em entrega e, como se pensasse no que ouvira, após algum tempo, voltou-se desesperado e olhou nos olhos de Eurídice, que esvaneceu como nuvem.
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Passei longo silêncio. Apenas ouvia as mulheres do lugar que me traziam pergaminhos, partituras, relatos, ervas, histórias; ouvia diálogos entre mulheres. Eu era toda audição e mutismo, enquanto velhas peles caíam sucessivamente e me via em carne viva, exposta aos vermes, às moscas, à Terra. Uma mulher me trouxera uma ânfora que trazia Dionísio, entre sátiros e homens vermelhos com paus imensos, soberbos, retos, grossos e de glandes palatáveis. A mulher me ofertava a bebida, feita de raízes mágicas e eu caía em sonho profundo, em êxtase. O cântico sagrado das mulheres me trazia de volta do transe. A bebida acendia regiões do cérebro e me fazia viajar por outros universos. Ela me servia o Tempo e me olhava em silêncio, enquanto eu, destituída de corpo, era apenas luz, centelha solta no universo. Reencontrei com meus mortos e os mortos da Cidade que me contavam segredos e curas. As anciãs me envolviam em um grande círculo, em que giravam dançando, ensinaram-me delicadezas e refinamentos, antes apenas intuídos. Rudimentos e apreciações da Justiça. Tornei-me intransigente ao barulho. Aperfeiçoei a sondagem da natureza humana. Aprendi a olhar e dançar com espelhos, mas os nomes eram outros; os nomes eram-me dados em sonhos e eu os guardaria em segredo. Coube a mim o mistério do mundo. O meu próprio nome foi-me dado em sonhos, quando eu era iniciada na solidão de pequenos quartos. Vi-me pintada, vi-me sem pelos, vi-me nua. Longos tempos fui tratada, às margens do rio. Uma outra cidade me requestava, uma cidade de iniciação e primórdios. Mulheres que sempre me visitaram em sonhos estavam ali. Durante todo o antes, estive perdida, sem exercer intuições, poderes, sem cuidar da minha cabeça.
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Orfeu era homem das encruzilhadas. Talvez, fosse filho daqueles moradores do Pelourinho, apagados do lugar, como se nunca tivessem existido, num processo violento, brutal e de relocação forçada. Saíram de onde sempre viveram para terras mais ásperas. Numa clareira da memória, lembro de ter entrado por uma porta estreita no Pelourinho, quando me deparei com um terreiro redondo, circular, onde muitas portas se abriam com crianças correndo, mulheres lidando com roupas, comida e árvores que davam boas sombras e frescor ao lugar. Eu estava lá e vi, numa daquelas crianças, o nosso Orfeu. Ali nasceu e cresceu bonito, negro, músico com voz de suavidades. Sorriso largo, gargalhada espalhafatosa que sacudia o corpo inteiro. Filho dileto de Deuses e Deusas. Sentia-se dono de poderes, como se pudesse mudar o movimento do mundo e não exercesse o seu destino, a sua força. Mas que poderes? Era apenas um mortal! Apenas um menino negro do Centro Histórico da Cidade e poderia ser mais um nas estatísticas. Lembro também que havia Dona Santa em seu sobrado de assoalhos, seu santo Antônio no oratório, copo de água fresca do filtro de barro, janelas de imensidão, e o seu envelhecimento. Quem sabe, fosse avó do nosso Orfeu? Quem sabe ela, um dia, teria lhe dito: Orfeu, a vaidade ainda te mata! Ou você entalha essa natureza, como o velho Pandini faz com a madeira, ou você se perde, meu filho. Ele me veio em sonho e me deu esse recado, trazia o ogó que era para não haver dúvidas. Está me ouvindo, meu filho? O menino correra desatinado, assustado. E antes que descesse a escada, vira dona Santa lá embaixo, esperando por ele, tranquila. Você me ouviu, Orfeu? O menino parado ali, no alto da escada, sem ter pra onde correr, assentiu com a cabeça. Ubiquidades o acompanhariam por toda a vida e, naquele instante, descobriu que manteria sempre um diálogo com mundos estranhos. O menino chorou no colo de Dona Santa e tudo ficou no quintal das coisas esquecidas.
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Nas calçadas, o abandono se perpetuava. Pessoas morriam a caminho de casa, sem retorno, petrificadas em seus gestos, risos, suspiros. Correntes de ar advindas dos subterrâneos traziam a maldição, numa espécie de Vesúvio invisível que massacrava a Cidade. Eram cinzas tóxicas que penetravam os pulmões, ossos e o corpo, enquanto o sangue, em combustão, explodia. Estávamos sem ar. Mais uma vez, em nossas vidas, não conseguíamos respirar. O contato daquela experiência química com a atmosfera marítima e com a história de sangue do lugar provocava o estado pétreo dos corpos. O medo rondava nossas pupilas. Comíamos investigando se ainda havia paladar, olfato e sinais dos sentidos. Uma anosmia coletiva impedia de sentirmos o odor dos mortos, que grassava em toda parte. As gentes eram tomadas pela demência, fraqueza do pensamento, tibieza que rondava o estado das pessoas, cuja musculatura já não comportava os ossos, o medo, o esqueleto, o desespero e a consciência. Buscava-se oxigênio. Matava-se por oxigênio. Aviões de oxigênio cruzavam horizontes, invadiam os céus e se chocavam no mar.
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No Passeio Público, um homem negro e carpido pelo tempo, cego, muito forte e bonito chupava mangas amarelas, maduras e doces que caíam das árvores diretamente em suas mãos, como se ele ordenasse a queda. Era Tirésias com o seu bastão, cumprimentando os frequentadores do lugar, inclusive as deidades anfitriãs, explicando às divindades forasteiras o que acontecia ali. Os deuses de outras terras resolveram pedir permissão aos Deuses da Bahia para se mudarem temporariamente para a Cidade. A Baía é um Golfo! Deuses caminhavam pelo Campo Grande e se sentavam nas escadarias do Teatro Castro Alves, tomavam toda a arquitetura do lugar, entristecidos.
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Aristeu era policial negro, de seus 35 anos. Conheceu Eurídice no Pelourinho, enquanto ela fazia aula de dança com Zebra. Namoraram durante poucos meses e ela rompeu a relação porque não estava apaixonada. Inconformado, ele a seguia e aparecia nos lugares frequentados por ela e seus amigos. Depois, veio Orfeu e pronto. Naquele dia, Aristeu acordara decidido a resolver as coisas com a ex-namorada. Chegara ao estacionamento do Dique do Tororó e começou a caminhar em busca da moça. Ela costumava ficar com livros sob a sombra das árvores e ensaiar com a turma do teatro. Lá estava ela. Orfeu descera do ônibus e de longe avistara aquele sujeito que vivia no pé de Eurídice. Logo hoje! Ele saíra de casa tão feliz; diria tantas coisas a sua namorada sobre a montagem que estavam ensaiando, os planos sobre morarem juntos de uma vez, os planos. Acelerou os passos para livrar Eurídice daquele cara porque ela gesticulava e parecia exaltada, apreensiva. Orfeu gritou seu nome para que ela o visse e acenou. Preferiu andar tranquilamente, dançando, como era seu modo de andar. A mochila estava aberta e a agenda caiu. Intencionou apanhá-la, quando ouviu o tiro. Eurídice caindo nas águas escuras do dique, enquanto Aristeu fugia. O filho das encruzilhadas se erguera! Todos os caminhos giraram diante de si naquele momento. Orfeu não hesitou e mergulhou, sabendo que caminharia para a Morte. Não se pode dizer o que viu durante a travessia, nem das almas silenciosas remando sob às ordens de Caronte que, por sua vez, obedecia a uma mulher negra e muito velha. Ela apenas olhava para o jovem e permitia a sua ida, batera em sua cabeça com o ibiri. Enquanto a barca o levava, o amor se firmava em Orfeu. A Anciã, determinara a proibição: só olhe a moça na Claridade, se a quiser viva.
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Agora, estamos todos aqui, no Dique do Tororó, e Orfeu observa os Orixás e a Cidade. O Povo de Santo desce dos morros e chega de toda parte; entoam cânticos sagrados, vestidos de branco. Os Orixás, reunidos ali, movimentavam-se, dançam de acordo com o chamado dos atabaques, dos cânticos. Fez-se um grande círculo com o povo dos terreiros, em torno do dique e suas águas negras se abriram e dali nasceram lírios brancos. Orfeu cantava com seu povo e dançava, em transe. Ele sabia que seria a hora de receber, enfim, Eurídice. Seria o momento de cantar também à Cidade da Bahia. A melodia enternecia os ponteiros dos relógios e as batidas do coração. Na Paralela, os trens do metrô paravam lentamente e todos ouviam aquele canto de amor. Todas as divindades que estavam visitando a Cidade estavam lá, compondo com a multidão aquele espetáculo. No centro do Dique, todos os Orixás em dança e em cânticos ofertavam a cura. As encruzilhadas entrecortavam-se em rituais, oferendas e sacrifícios de cabras, bois e carneiros, que eram entregues ao Deus de Orfeu. Os lírios se abriram e surgiu Eurídice, numa barca. Agora, ela já havia cumprido sua sina e cantava. De mãos dadas, cantaram e permaneceram. Já não haveria o excesso de mortes e de dores. O ar fantasmagórico da Cidade lentamente desaparecia e a vida exercia-se novamente. Muitas voltas o Tempo deu sobre si mesmo, mas tudo aconteceu numa Segunda-feira.
Rita Santana [Ilhéus, Bahia] é poeta, contista, atriz e professora graduada em Letras [UESC]. Em 2004, foi vencedora do Prêmio Braskem de Literatura para autores inéditos com o livro de contos Tramela, além de participar de diversas coletâneas, publicou vários livros de poesia: Tratado das Veias [2006], Alforrias [2012] e Cortesanias [2019].