Camila carrega no ombro direito uma tatuagem de sereia com rabo de satanás. Circulava quase sempre de blusa regata, o que tornava possível ver parte da sereia e, a depender da largura da alça, até mesmo a tatuagem por inteiro. Minha banca de salgadinhos fazia parte de seu roteiro diário aqui na Faixa de Gaza, apelido que um professor colocou neste amontoado de vendedores por entre os pavilhões de aula. Quase uma menina, ela costumava ficar por aqui de papo com colegas enquanto devorava uma empanada, e se agitava o suficiente para eu afirmar com segurança que, além do rabo de satanás, a sereia usa óculos e cabelos curtinhos. Do mesmo jeito que a Camila. 
            Tomou chá de sombra. Não aparece por aqui desde que o semestre começou. Então, repare que já faz um tempinho, isso, né? Você não é a primeira pessoa que me pergunta por Camila, como se eu tivesse alguma intimidade com ela... Camila é minha freguesa, apenas, ou era, mas possui uma simpatia extensiva, sabe? Por isso mesmo se notou logo quando ela perdeu a paz, assustada com qualquer barulho, esmorecida. Também, o clima ficou agitado por conta das eleições pra presidente, sabe como é, uns e outros falando alto, grupos estranhos fazendo manifestações aqui no campus de Ondina, de vez em quando um bate-boca, puxar conversa ficou difícil, nunca se sabia, como ainda não se sabe, a pedrada que podia vir como resposta. Mas a Camila murchou rápido demais. E depois sumiu.
*
            O que você faz aí atrás da cortina?
            “Não estou atrás da cortina.”
            Oxe, você está atrás da cortina, sim!
            “Nada disso adianta. Ele sabe que estou aqui.”
            Ele, quem, pelamor de Santa Dulce?!
            “Olhe lá fora.”
            Mas há tanta gente na rua...
            “Então, repare melhor.”
            (E porque não havia árvores na calçada fronteiriça, dava pra ver o rapaz encostado ao poste, olhando fixamente para a janela da casa onde a moça se postara atrás da cortina recolhida num dos cantos).
            Ora, mas é o filho de Alcina. Que é que tem o rapaz?
            “Tá me espionando, me esperando...”
            Como é que você sabe? Ele pode estar esperando uma carona... Sei lá.
            “Não, ele tá me seguindo.”
            Como seguindo? O rapaz mora aqui na rua. É filho de gente conhecida, frequenta a igreja e tudo o mais.
            “Esses são os mais perigosos!”
            Deixe disso. O rapaz pode estar interessado em você.
            “Não seja inocente. Você sabe que não se trata disso. É outra coisa.”
            O quê, pelamor de Deus?
            “Quer mesmo que eu diga? Quer?!”
            Como você sabe o que ele quer?
            “Ele mesmo me disse, gritou pra todo mundo ouvir.”
            Não quero ouvir, não quero ouvir!
            “Ele e os amigos dele são fascistas, entende?”
            Não acredito que você acha que esse rapaz tá lá fora por causa de política, não acredito.
            “Antes fosse, mas é coisa mais rasteira e tenebrosa.”
*
            Você sabe o que é nascer na Liberdade? Eu também não, nasci no interior. Mas nascer na Liberdade deveria ser algo próximo a “nascer na liberdade”, não? 
            Lembro quando cheguei aqui para estudar no Central. A gente precisava apresentar carteirinha de saúde na matrícula. E juntar uma abreugrafia. Abreugrafia! Veja o tipo de preocupação que se tinha, então, na área de saúde pública. E a estudantada recorria ao posto de saúde da Liberdade pra tirar o atestado. Era uma aventura sair do Campo Grande, ou da Piedade, atravessar Nazaré, subir o Barbalho e esticar até a Liberdade numa arabaca de Pero Vaz. Precisava ver nossa cara de pau ao dar o endereço residencial: Rua do Céu, 35, ou 18, ou 44... A gente nem sabia onde ficava a Rua do Céu e sequer se dava ao trabalho de antes andar um pouco por ela pra verificar se o número existia. Ora, os servidores do posto sabiam de cor e salteado que era gaiva nossa, patacoada de estudante. Rua do Céu, Liberdade. Escrevi uma letra de música com esse título, mas isso é outra história.
            Pois era lá que Camila morava com a mãe. Dizem que era um sobrado, mas isso passa uma falsa ideia do local. Era uma casa de dois pisos, espremida entre outras residências humildes, com aquele famigerado portãozinho de ferro plantado na base de uma escadinha de concreto para dar acesso ao segundo andar. Passei algumas tardes de sábado na Rua do Céu, naquele levantadinho, quando a Camila não estava. Sabia pela mãe dela do engajamento da menina em movimentos sociais de defesa das minorias, LGBT e mais que fosse. Ela era empolgada com a universidade, com os faróis do novo mundo em que mergulhava... Hummm, faróis do novo mundo... Bem, fato é que, de repente, as ocasionais tardes de sábado começaram a ser canceladas pela mãe dela, sempre havia um motivo novo, e eu senti que estava sendo dispensado. Então, deixei de lado a Rua do Céu e seu colchão de nuvem e fui cuidar de minha arte. Até que me contaram do sumiço das duas, mãe e filha. 
            A Liberdade podia ser uma empresa de ônibus que fazia a mesma linha todo dia, como se pichou em muro no tempo da ditadura. Como também podia ser uma calça velha, azul e desbotada, como apregoou a propaganda. Podia até ser uma arma quente, mas só se fosse de tanto atirar... Dizem que a liberdade é o bem mais precioso para o ser vivo, dizem. Mas a verdade é que ninguém nasce na liberdade, ninguém. Muita gente pode pensar que vive na Liberdade, pensar que vive... Desculpe aí, eu embaralho os tempos e os temas... Rua do Céu, Liberdade, levantadinho do chão...
*
            Tudo isso ainda é muito recente. Mas não há mistério, há surdina. Porque não se trata somente da Camila, há mais estudantes sumidos do campus. Boa parte entrou em depressão braba, outros desenvolveram doenças estranhíssimas, muitos desistiram, simplesmente, e houve os que sofreram perseguição virtual e física das mais odiosas. Ou porque faziam oposição ao presidente eleito, ou por ostentarem pele escura, ou por questões de gênero, ou por conta de religiosidade, que no fim das contas sempre agrupa alguns desses outros temas. E isso aconteceu também com professores, viu? Houve quem reagisse etc. E houve quem cedesse e preferisse sumir do mapa, procurar outras vias de sobrevivência ou luta. O quadro geral pode até sugerir um copo de liquidificador cheio de ingredientes, pronto pra vitaminar, só que não, está pior do que no período da ditadura militar: o absurdo normalizado. E vai piorar. Isso não é calmaria, é melancolia. Tá certo... Reconheço que melancolia é uma forma de seguir resistindo, mas a situação vai piorar.
            Então, tudo aqui agora parece calmo, esse espaço urbano privilegiado, um campus universitário aberto, frondoso, arejado... Aproveite, pois não vai durar muito. O objetivo está posto e é nítido: já dá pra ver prédios residenciais e comerciais subindo no lugar desses pavilhões de aula. Ou ruínas, embora duvide disso, pois não deixarão de aproveitar o terreno para aumentar suas fortunas.
            Aqui deixou de ser espaço de resistência pra Camila, talvez ela consiga em outro lugar, em outro momento. Eu mesmo vi essa garota sendo perseguida até o ponto de ônibus da Adhemar de Barros, cercada por um grupinho de fortões de camisetas amarelas, a ouvir torpezas, tipo, vou lhe foder toda, vou lhe ensinar a gostar de macho, você vai aprender a gozar num caralho, vou arrancar na gilete esta sua tatuagem, filha de satã! E mais outras ameaças vis, coisas que estão na lei como crimes, mas que atualmente dizem ser “exercício do direito de expressão”. 
            Lamento, mas preciso vazar, tenho que recolher equipamentos e guardar ferramentas. Não, não, vai piorar, é no que acredito. Em vez de campus, vejo um deserto pantanoso sem possibilidade de canto de sereia com rabo de satanás.​​​​​​​
Carlos Barbosa é jornalista e bancário aposentado e tem livros de poemas e de ficção publicados. Nasceu no sertão do São Francisco e veio para Salvador, em 1974, estudar no Colégio Central. Residiu em vários bairros da cidade, entre eles, Aflitos, Politeama, 2 de Julho, Santo Antônio Além do Carmo e Vila Laura. Formou-se na UFBA. Morou e trabalhou em Feira de Santana e Brasília. Pisou uma vez em solo estrangeiro, quando visitou Lethem, na fronteira Brasil/Guiana. É pai de Maíra. No mais, resiste e insiste.