Rumaram ele pra cima com tamanha força que o corpo rodopiou duas vezes antes de voltar para os braços do pessoal. A criançada gritava enlouquecida enquanto os caras arrancavam a farda e lhe apertavam as calças na altura do pau. Batiam com a boina na bunda enquanto ele ficava dependurado de cabeça pra baixo. Jaime Anão só conseguia dizer por favor, pessoal, sou eu, sou eu, não façam isso comigo. Tentei impedi-los.
          “Porra, velhos, parem com isso”.
          Eu conhecia todo mundo desde pivete. Éramos coligados de roubar juntos os otários na estação da Lapa. 
          “Colé, Binho. Se saia. É parente seu?”, disse-me Juninho, visivelmente alterado.
          “Ele não é parente de ninguém. Deixem de sacanagem.”
          Juninho estapeava a nuca de Jaime Anão e me encarava com um olhar ameaçador.
         “Faça a merda que quiser”.
         Voltei para o bar e continuei a tomar minha cerveja.
         Jaime Anão começou a chorar.
         “A sua é essa, né Juninho?”
         Não se pode confiar na PM.
         Jaime Anão andava pra cima e pra baixo com uma imitação de farda ajustada ao pequeno corpo, repassando as ordens dos policiais militares que tomavam conta de nossa área. A galera do tráfico tinha sido expulsa, parece que correu todo mundo para os lados da cidade baixa. 
         Aderimos à nova ordem. Todo mundo precisa sobreviver. Eu entendo. Só que Jaime Anão gostava desse negócio de ser piru dos homens. Isso ninguém perdoava. Não sei dizer o motivo, mas ele caiu em desgraça com os PMs e o pessoal da rua se aproveitou. Os PMs assistiam, distantes uns dez metros da cena. Gargalhavam, assobiavam, aplaudiam enquanto bebiam encostados nas viaturas.
         Jaime Anão ficou nu. Juninho cortava os longos cabelos dele com uma tesoura. Um outro cara pintou a boca com um batom vermelho. Alguém apareceu com uma calcinha vermelha e uma peruca. Juninho esticou o pau de Jaime Anão e fez menção de cortá-lo com uma tesoura.
         “Vai virar Jana, vou abrir uma buceta em você”.
         A gritaria era geral e cada vez mais surgiam curiosos.
        “Celular no bolso. Ninguém vai filmar nada”, dizia o tenente Rodrigues, que comandava a nossa área.
         Jaime Anão desistiu de resistir. Não emitia mais nenhum som. Vestiu a calcinha fio dental sem qualquer resistência. Colocou a peruca, com um olhar vago. Botaram nele também um sutiã roxo. Rebolou com o dedo na boca porque ordenaram. Desfilou porque ordenaram. Por um momento achei que ele estivesse curtindo, até que percebi o olhar maligno. Eu já tinha visto aquele olhar. A gente não andava mais pelos lados de Pernambués por causa daquele olhar. Rumaram ele pra cima de novo. O corpo diminuto rodopiou outras duas vezes. Desta vez ninguém segurou. Ele caiu com um baque surdo no asfalto. Começou a ter convulsões. Todo mundo correu. Os PMs arrancaram com as viaturas.  Em menos de um minuto, não havia mais ninguém perto dele. O corpo deu mais uns tremeliques e ficou paralisado. Terminei minha cerveja e andei até ele.
          Jaime Anão sorriu e abriu os olhos.
         “Eles iam me matar, Binho.”
          A boca sangrava. Percebi que faltavam dois dentes inferiores.
         “Você é um bom ator. Vá pra um posto”.
          Ajudei ele a levantar. Sua farda fora rasgada em pedaços. Não havia o que vestir. Tirei minha camiseta branca e dei a ele. Ela o cobria todo.
         “Vou no HGE”.
          Voltou duas semanas depois. Mancava com a cabeça enfaixada. Vestia ainda minha camisa branca, encardida com manchas de sangue, um short verde de criança e chinelas. Os dias de oficial acabaram. O pessoal falava com ele de boa. Aquilo tudo era passado. Eu bebia minha cerveja na mesa instalada na calçada. É no bar que faço negócios, recebo encomendas e encontro os clientes. Jaime Anão puxou uma cadeira e encheu seu copo. Como se a gente tivesse se visto ontem.
          “Binho, você soube que o tenente Rodrigues foi preso?”
          “É por isso que ninguém apareceu aqui hoje”.
          Jaime Anão se guardou em silêncio. Pedi um rango pra gente. Comeu devagar. Lambeu os beiços. Eu sabia que ele gostava muito de galinha ao molho pardo.
         “Os meninos devem voltar hoje de noite mesmo. Mais tardar amanhã”.
         Foi a minha vez de ficar calado.
        “Não fique preocupado. Tá tudo certo”.
         Juninho chegou no bar. Escolheu uma mesa lá dentro. Falava alto, cumprimentando todo mundo. Dava aquela risada que parecia relincho de cavalo. Devia ter roubado alguém com grana, celular bom. Só ficava alegre assim. Jaime Anão gastou um tempo, que parecia infinito, observando cada gesto de Juninho. Era o olhar perverso, não o maligno. Era por causa dele que a gente estava proibido de entrar nas Cajazeiras.
        “Perdoar é uma coisa bonita, Jaime. Precisa ser muito homem pra isso”.
        “Pena que nunca fui homem”.
        Passamos a conversar sobre nossos negócios com a galera do tráfico.

Flávio VM Costa [Salvador, Bahia] É formado em jornalismo pela Universidade Federal da Bahia, Flávio VM Costa escreveu os livros de contos Você morre quando esquecem seu nome [Bissau Livro, 2020] e Caçada Russa [Penalux/2016]. Mora em São Paulo, onde é editor do UOL.